quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Turquel despediu-se do Dr. Joaquim Guerra

Centenas de pessoas participaram no último adeus ao médico Joaquim Guerra que faleceu no Sábado, aos 95 anos. O funeral do antigo Presidente do Hóquei clube de Turquel e do Ginásio Clube de Alcobaça realizou-se em Turquel perante centenas de pessoas, entre amigos, atletas e ex-atletas dos clubes que dirigiu, familiares e antigos doentes, que encheram, momentos antes, o Pavilhão do Hóquei Clube de Turquel para a Missa de corpo presente.

Aos seus familiares a Rádio Cister apresenta as suas condolências.

DR. Guerra O médico de Turquel
Começou montado a cavalo no exercício da sua profissão, a curar quem dele precisasse. Em 64 anos sanou muitos males, ajudou 5370 bebés a nascer. E ainda hoje veste a bata e arranca o dente a quem apareça à sua porta aflito de dor.

Joaquim Guerra senta-se numa cadeira forrada a fórmica. Atrás dele, noutra sala, está um pequeno fogão de dois bicos com uma panela que já cozeu muitas dentaduras. Em caixas de papelão, muitos dentinhos artificiais. O médico de Turquel entregou a sua carteira profissional em 2004, aos 93 anos. Ele era uma espécie de João Semana – curou achaques diversos, ajudou muita gente a nascer. E arrancou muitos dentes.

O médico nasceu em 1911 na Quinta de Vale de Ventos, um couto agrícola dos frades do Mosteiro de Alcobaça. Foi o terceiro de dez filhos. O pai dele trabalhava na pecuária e negociava com juntas de bois – ninguém imaginava que Joaquim pudesse um dia chegar à terra, doutor, formado em Coimbra, pronto a curar todos os males.

Sentado no consultório em Turquel, aos 93 anos, o dr. Guerra ainda tem a memória na ponta da língua; conta que na mocidade calcorreava a Serra dos Candeeiros e os campos à volta no lombo de um cavalo: "Sempre fui bom a galope". A habilidade para as coisas equestres deu-lhe na mocidade a alcunha de "O Cavaleiro", quando desfilava em Coimbra, muito aprumado, no Batalhão Universitário da Legião Portuguesa.

Já lá vamos. Acaba de entrar uma paciente antiga que pede ao doutor que a veja com urgência. O lugar do dente que ali tirou há dias dói-lhe como se ele ainda lá estivesse.
O Doutor Guerra não se faz de rogado. A mulher senta-se na cadeira de dentista – uma peça de museu. Os olhos perspicazes do médico brilham por detrás das lentes grossas dos seus óculos. Debruçado na boca da paciente, ele descobre o busílis da questão – o bocado de dente que restara de uma intervenção estomatológica difícil.

Tira da boca da mulher o que lá ficou e de caminho vai também embora uma "pipetazinha na cara". "Ela disse-me que andava apoquentada com aquilo, que ainda tinha de ir para o hospital em Lisboa". Eu disse-lhe: "Que disparate, não custa nada, arranco-lhe isso já aqui!". Assim foi. A paciente sai satisfeita: "Muito obrigada, senhor doutor".

A BATA EM VEZ DA FARDA
Joaquim Guerra remexe na gaveta de uma pequena mesa com pernas de ferro enferrujado, procura a carteira profissional. Não a encontra e fica arreliado. Lá se recompõe. "Eu fiz a instrução primária na Benedita. Ia a cavalo num burro para a escola, aí a uns seis quilómetros."
Quando aprende a ler e escrever, o pai dele acha que basta. Não fosse um curandeiro da terra intervir, Joaquim nunca tinha chegado longe nos bancos da escola. O progenitor convence-se. O rapaz vai de burro apanhar o comboio ao Valado, para ficar internado num colégio na Figueira da Foz.

Feito o quinto ano do liceu, ruma a Santarém para continuar os estudos e depois à capital. "Tinha um tio que era cónego, o Manuel Luís, prior na Sé Patriarcal de Lisboa; de modo que fui fazer os preparatórios para entrar na escola de guerra. Era a minha ideia, mas não tive notas que chegassem."

Ainda hoje, o Doutor Guerra ressente-se com o desaire. Com o nó da gravata muito apertadinho nos colarinhos direitos da entretela, o médico esquece o aprumo e confessa que em jovem não lhe passava pela cabeça curar males alheios - preferia a farda à bata branca. "Mas os meus colegas disseram-me: Vamos lá para o Porto que até é mais barato! Vamos para medicina!..."

Livre como um passarinho, Joaquim ruma à Invicta. "Chegámos sem saber ao que íamos, e ainda lá estive dois anos, tirando o primeiro ano do curso". E então a gente disse: "Vamo-nos embora daqui: isto é muito frio de Inverno e muito quente de Verão, ainda apanhamos alguma doença!"
Premonição certeira. Antes da partida, Joaquim adoece com tuberculose pulmonar. Fado difícil, ainda não há antibióticos.

Lá recupera. Com a cura, vem a aproximação ao Partido Comunista. Nas ruas do Porto olha condoído para as mulheres e raparigas do campo que procuram trabalho. "Era uma pobreza, dormiam em qualquer lado. No chão do corredor da pensão onde estávamos, e até mesmo no chão da rua."

O CAVALEIRO DE COIMBRA
Depressa esquece a política e a pobreza que lhe machuca a alma. Troca o Porto por Coimbra e lá faz os cinco anos do curso para médico. "O meio académico coimbrão não era grande petisco. Muito liberal, de uma liberdade que para os rapazes não é bom serviço."

Joaquim não nega a boa vida. Sentando no seu consultório, ainda hoje se ri malandro. Diz ele, tinha boa figura. "Mas fui sempre sério com as mulheres; nunca tive amantes."
Longe do Porto pobre, na Coimbra das festas estudantis, Joaquim aproveita. Torna-se comandante do Batalhão dos Universitários da Legião Portuguesa. A cavalo participa numa parada. E nisso sim, tira proveito. "E sobressaía! Durante quatro anos também desfilei na Queima das Fitas como cavaleiro tauromáquico. Eu enchia-me de vaidade que é um grande defeito que nos acompanha toda a vida", diz empertigando-se na cadeira, imitando o aprumo de outros tempos. Ele ainda tem o bigodinho à Clark Gable.

As serenatas, a vida nas repúblicas, a camaradagem na associação académica orientam-lhe os dias. Até para estudar, Joaquim prefere o ar livre do Jardim Botânico. Lê as sebentas em voz alta, enquanto o seu amigo Tibério Nunes bebe a ciência de ouvido.
Já pouco se lembra do pesar por ter ficado aquém nos exames para a escola de guerra. O que não impede que quando chega a oportunidade de servir a Pátria, se encha de brios e cumpra afincado dois meses em Estremoz, onde esteve colocado à espera dos comunistas.
Joaquim, que tinha cumprido serviço militar na Infantaria, tinha sido chamado. "A certa altura houve a Guerra Civil de Espanha (1936/1939), e nós fomos colocados junto à fronteira porque se supunha que os comunistas, vencendo, avançavam para Portugal ali por aquela zona. Lá estivemos. Ainda tenho saudades da rapaziada. Confesso que fiz um figurão mas o inimigo, esse nunca o vi".

Joaquim Guerra forma-se no final de 1940. Nesse ano, antes de regressar a casa para exercer clínica, ainda tem tempo para o último desmando da juventude. No dia em que a Académica derrota o Benfica por 5-4 na final da Taça de Portugal, termina a noite na esquadra do Rossio, depois de alcoolizados desacatos na Baixa de Lisboa. Tinha feito a festa pelo desaire benfiquista.

À MINGUA DE DOENTES
Com o canudo na mão, Joaquim Guerra regressa a contragosto a Turquel. Queria dedicar-se à cirurgia, mas o pai não está para lhe alimentar a ambição; corta-lhe a mesada. Cabisbaixo e cheio de saudades de Coimbra lá ruma a Turquel para começar a actividade de clínico em terra pequena.

O tempo passa, a família mima o médico novinho em folha, que de médico tem pouco - não tem doentes. "A minha mãe, coitadinha, condoía-se com o filhinho, tão doutor e sem nada para fazer."
Mas um dia, em casa dos Guerra, lá aparece um homem aflito, a pedir ajuda para o mal de pele que pôs a sua mulher de cama. Aparelha-se o cavalo do doutor. "E lá fui eu, direito que nem um fuso, para tratar a minha primeira paciente."

Na receita passa umas pomadas para a vermelhidão. Em vão. "Quando o homem me aparece a queixar-se que a mulher estava pior, fiquei tão triste..."
O mal acabou com mezinha caseira: óleo de trigo pincelado com uma pena de galinha, receita da mãe do Doutor Guerra. "Eu disse cá comigo: Ora abóbora, andei cinco anos a estudar para isto. Quando voltei a casa da mulher, já não ia tão emproado."
Aplicada a mezinha, a doente melhora a olhos vistos. A fama do doutor espalha-se de Turquel à sede do concelho, Alcobaça.

DO CAVALO AO OPEL
O antigo aluno de medicina em Coimbra lá se habitua à pasmaceira da vida rural - era um médico de aldeia, um João Semana, pau para toda a obra, sem qualquer especialidade. "Um médico no campo tem de saber aplicar um remediozinho nos olhos, nos ouvidos ou na garganta. Saber curar uma dor de barriga, fazer nascer bebés. Tive até de aprender a lidar com a humildade das pessoas". As consultas cobrava-as a cinco escudos, quem as podia pagar. Ao consultório em Turquel, abre outro na Benedita. Em 1954 é a vez de Rio Maior.

O doutor Guerra fez 5370 partos. Grande parte destes bebés foram depois seus afilhados. Um padrinho médico dava jeito - pela vida a fora, o Doutor Guerra nunca lhes cobrou consultas.
Há seis anos Joaquim Guerra, depois de ter tirado estomatologia em Espanha, ainda teve forças para ir às aulas da pós-graduação em ortodôncia na Universidade Moderna. "Para aperfeiçoar o tratamento da boca dos outros."

Longe vão os tempos em que de cavalo, primeiro, bicicleta e Opel à manivela, depois, o doutor ía onde houvesse um doente. No edifício do consultório de Turquel, contíguo à casa onde criou a sua família, Joaquim Guerra reconhece que tem vivido muitos anos na melhor profissão do mundo: a de ser médico e “aliviar quem padece”.

A SANTA IRMÃ
Sobre a lareira de sua casa, Joaquim Guerra tem um porta-retratos com a fotografia de uma Carmelita de seu nome religioso Maria da Conceição. É a sua irmã Isabel, risonha, no dia em que festejou os 50 anos de Carmelo. "Está a ver este sorriso?! Esta dentadura fui eu que lha fiz."

Duas das irmãs de Joaquim Guerra seguiram o Carmelo - Carminda e Isabel. O doutor não esconde a preferência por esta última, e emociona-se de cada vez que se lhe refere. "Ela viveu sempre muito honestamente, e só teve um pretendente: um rapaz muito recatado, que era farmacêutico. Ele nunca lhe tocou e ela era muito formosa, a mais formosa que havia! Era também uma excelente cavaleira e aquilo era preciso equilibrar bem porque eram bestas muito endiabradas."

Ainda hoje lhe custa a compreender porque aquela irmã tão bonita e prendada, aos 30 anos, se retirou. "Tenho pena de não a poder apresentar. Está no céu. Nem quando morreu saiu do Carmelo, ficou lá no cemitério, e pode não acreditar mas quando lhe abriram o caixão, ela resplandecia como luz. E eu disse: "É luz divina, passou por este mundo resplandecente, só quem acredita é que pode compreender."

FILOSOFIA AMOROSA
Joaquim Guerra casou no início da década de 30 com certa pequena de Lisboa que vinha de férias a Turquel. O seu pai era proprietário de uma confeitaria na Rua do Ouro. Três meses a namoriscar Irene Pereira, bastaram. Casou com ela. "Começámos a conversar mais intimamente e pouco depois casámos. Não é não preciso muito tempo para conhecer as pessoas, porque aquelas que andam na verdade e na sinceridade, e na modéstia, a gente conhece-as logo." Joaquim e Irene tiveram cinco filhos e "uma data de netos e bisnetos". Joaquim perdeu Irene há 13 anos.
In Rádio Cister
Text retirado de Correio da Manhã

1 comentário:

Grupo de Teatro Amador de Turquel disse...

O QUE NÃO SE DIZ AQUI É QUE ESTE HOMEM MATOU A MINHA IRMÃ POR NEGLIGÊNCIA MÉDICA, AO PASSAR UM MEDICAMENTO ERRADO. ESTE HOMEM DEVIA TER PASSADO UNS BONS ANOS NA CADEIA! E SIM, ESTOU A FALAR DO DR. GUERRA DE TURQUEL!!!!